Profissionais indicam caminhos para uma abordagem jornalística com dignidade para as vítimas de violência de gênero, longe do reforço de estereótipos nocivos que revitimizam ou culpabilizam a mulher
Durante o período de distanciamento social, vários países registraram aumento no número de casos de violência contra a mulher. Aqui no Brasil, a situação não foi diferente. Os números chocam: Mais de cem feminicídios foram registrados na Bahia até o final de 2020, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA). Os casos rapidamente ganham o noticiário, mas quase sempre as matérias apresentam descontextualização, abordagens que reforçam estereótipos ou que culpabilizam a vítima. A preocupação com o tema e com a forma como os casos são tratados pela imprensa motivou a jornalista Amália Casal Rey, diretora da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), a sugerir que a pauta fosse discutida com urgência pela instituição.
Um dos casos ocorridos na Bahia e que causou debate principalmente entre as mulheres que compõem a diretoria da entidade foi o assassinato da estilista Tatiana Fonseca, de 39 anos, morta a tiros pelo ex-namorado, em dezembro. A vítima não havia feito denúncia contra o autor, que se suicidou logo após cometer feminicídio (Veja o caso aqui). Mas nem mesmo medidas protetivas judiciais têm sido eficazes para evitar esse tipo de crime. Este foi o caso de Viviane Vieira do Amaral, assassinada a facadas pelo pai das próprias filhas, na véspera do Natal. Ela havia feito registro de lesão corporal e ameaça em setembro passado (Veja o caso aqui).
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 aponta que 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio no ano de 2018. Desse total, 88,8% foram vítimas de companheiros ou ex-companheiros. O feminicídio é mais comum entre mulheres negras, sendo elas 61% das vítimas. “É estarrecedor o crescimento exponencial de feminicídios em nosso país e o número de mulheres que perderam a vida tragicamente – muitas na frente de seus filhos – neste final de 2020 e início de 2021, em pleno olho do furacão de uma devastadora pandemia”, lamenta Amália Casal Rey. “Estamos sob pena de retornarmos à barbárie, se é que já não a estamos vivenciando em tempo real e virtual!”, alerta a dirigente.
A fim de compreender o conceito de feminicídio, entender o papel da imprensa e os cuidados que os profissionais do setor devem tomar para não revitimizar as vítimas de violência de gênero, a Associação Bahiana de Imprensa conversou com a secretária de Política para Mulheres do Estado da Bahia, a médica geriatra Julieta Palmeira, com Clarissa Pacheco, jornalista do Correio*, e com a advogada criminalista feminista Janine Souza, copresidenta da TamoJuntas!, organização social composta por mulheres que prestam assessoria gratuita a mulheres em situação de violência. As profissionais indicam caminhos para uma abordagem jornalística com empatia e dignidade para as vítimas.
Afinal, o que é feminicídio?
“Quando se fala em feminicídio, é sobre o resultado final e extremo de um processo histórico de violência sofrido por uma mulher e é importante destacar que, se de um lado estamos no país que criou a Lei Maria da Penha – o mecanismo legislativo de enfrentamento à violência contra mulher considerado como terceira melhor lei do mundo –, do outro, este país ainda apresenta índices elevados de assassinatos de mulheres comparados à média mundial”, confronta a advogada Janine Souza.
O Brasil é considerado o quinto país que mais mata mulheres no mundo, segundo dados do Mapa da Violência. Esse cenário desolador, para Janine, evidencia que o Estado não cumpre os compromissos formais relacionados à eliminação da violação estrutural dos direitos das mulheres. “Apesar da luta do movimento feminista para conquistar a formalização da proteção de direitos fundamentais e humanos das mulheres, há ainda um longo caminho na luta pela erradicação da violência contra as mulheres”, analisa.
Janine explica que, segundo o Artigo 121 do Código Penal brasileiro, o feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio, o ato de matar alguém, sendo que esta conduta pode ser considerada mais gravosa em razão de especificidades determinadas pela própria lei. “O feminicídio é um delito oriundo das desigualdades de gênero existentes na nossa sociedade e consiste na conduta de assassinar mulher em razão de ódio discriminatório contra a mulher ou em contexto de violência doméstica e familiar”, explica a especialista. “A qualificação de feminicídio é um instrumento de denúncia da violência sistêmica contra as mulheres e uma ferramenta do poder público que permite investigar o delito de forma especializada, e elaborar políticas públicas destinadas à proteção da vida das mulheres”, afirma.
Como cobrir
Clarissa Pacheco, jornalista do Correio* desde 2013, lembra que o termo feminicídio passou a ser usado na imprensa a partir da Lei de Feminicídio, em 2015. Nessa época, de acordo com ela, o uso ainda era muito incipiente. Clarissa é uma das repórteres responsáveis pela reportagem especial “O Silêncio das Inocentes”, escrita junto com os jornalistas Thaís Borges e Alexandre Lyrio. A série sobre o tema do estupro levou o Prêmio Petrobras de Jornalismo e o INMA Global Media Awards. “Quando a gente fez “O Silêncio”, não falávamos muito em feminicídio. Como a reportagem foi um projeto de destaque nacional, eu e Thaís Borges começamos a ser chamadas para alguns treinamentos”, recorda.
Em alguns destes treinamentos para os quais as repórteres do Correio* foram convidadas, Clarissa destaca o fato de sempre serem mulheres as principais interessadas pelo tema. “Participei de um evento do Instituto Patrícia Galvão, em São Paulo, e foi interessante perceber quem se interessa pela questão. O Instituto promoveu uma roda de conversa e estavam presentes uma promotora, uma juíza, uma defensora pública e duas médicas peritas que trabalhavam no Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo. Se não me engano, foram 26 mulheres”, conta a jornalista.
Na época, o Instituto Patrícia Galvão orientou as profissionais da imprensa sobre não hesitar em chamar de feminicídio, se há elementos suficientes no caso. Outra importante observação feita pela entidade foi quanto aos perigos da utilização de termos como “crime passional”, relata Clarissa. “Quando você diz isso, parece que está admitindo um motivo para ele cometer o crime”, explica.
O Instituto Patrícia Galvão é uma organização social feminista sem fins lucrativos, referência nos campos dos direitos das mulheres e da comunicação. Ele atua desde 2001, de forma estratégica, na articulação entre as demandas pelos direitos das mulheres e a visibilidade e o debate público sobre essas questões na mídia. A entidade foi responsável por elaborar o relatório Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da Cobertura sobre Feminicídio e Violência Sexual. O documento analisou 1.583 matérias sobre homicídios de mulheres e 478 sobre crimes de estupro veiculadas em 71 veículos representativos das cinco regiões do país. Da Bahia, foram verificados os jornais Correio* e Tribuna da Bahia.
O estudo concluiu que a abordagem romantizada e a desresponsabilização do autor pelo crime foram a tônica da cobertura dos homicídios nos veículos analisados, sendo que a maioria dos textos não aborda as reais motivações para o crime; nos que tentam apresentar um motivo, a maioria aponta como causas do assassinato: ‘ciúmes’, ‘violenta emoção’, ‘defesa da honra’, ‘inconformidade com a separação’, autor ‘fora de si’, ‘transtornado’ ou ‘sob efeito de álcool. Mais do que apontar falhas nas coberturas, o relatório forneceu dicas de boas práticas jornalísticas na apuração do tema.
Outra iniciativa aliada dos profissionais da imprensa na cobertura da temática é o Manual Universa para Jornalistas: Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher, lançado no final do ano passado pela Universa, plataforma feminina do UOL. O guia apresenta uma série de normas de conduta para a cobertura de crimes de gênero, desde como abordar familiares de uma vítima de feminicídio durante a apuração de uma reportagem, que tipo de foto usar em matérias sobre denúncias de assédio sexual e como evitar que uma mulher reviva um trauma durante uma entrevista.
“A função do profissional de imprensa e de comunicação deve ser, pelo menos, evitar multiplicar ou reproduzir a cultura machista e sexista existente em toda estrutura social brasileira”, aconselha Julieta Palmeira, secretária de Política para as Mulheres da Bahia. “Depende da imprensa a divulgação do movimento de mulheres que impõe a autonomia do corpo e da cidadania. Afinal, o corpo de uma mulher pode estar num ambiente público, mas ele não é público”, adverte.
Enfrentamento na Bahia
Segundo dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP-BA), a Bahia figurou como o terceiro estado que mais mata mulheres no país em razão da condição de ser mulher. De acordo com a criminalista Janine Souza, “isso evidencia o descaso e o descomprometimento do Poder Público em fortalecer a rede de enfrentamento capaz de acolher mulheres em situação de violência e de reduzir significativamente a possibilidade de a violência chegar à retirada da vida”, afirma.
No entanto, de acordo com Julieta Palmeira, o governo do estado vem, ao longo dos anos, implementando uma série de medidas, não somente de enfrentamento à violência contra a mulher e ao feminicídio na Bahia, mas também de incentivo à autonomia financeira das mulheres. “A Secretaria Estadual tem buscado reafirmar ações já existentes antes do período da pandemia, como projetos de incentivo ao empreendedorismo no estado”, observa Palmeira.
Segundo a secretária, são muitos os desafios que o governo precisa enfrentar para a implementação de políticas públicas no âmbito da violência contra a mulher, mas ela garante que “não são desafios impraticáveis, quando há um conjunto de pessoas dispostas a lutar por essas conquistas”. Ela lembra que muitos dos 417 municípios baianos nem sequer possuíam delegacia ou funcionários públicos suficientes para o atendimento à mulher, por exemplo. “De 2019 para cá, nós implementamos 15 delegacias, que têm uma estrutura complexa porque os(as) investigadores(as) e delegados(as) têm jornadas diferenciadas”.
Foi por incentivo da Secretaria de Políticas para as Mulheres que o governador Rui Costa resolveu implantar um núcleo de atendimento às mulheres em situação de violência nas delegacias comuns. “Você não pode ter num município pessoas que defendam o agressor e a vítima ao mesmo tempo, como acontece em algumas localidades. É preciso que todo o pessoal que lida com esse tipo de situação esteja preparado, é uma estrutura complexa”, afirma. A Secretaria possui ainda um projeto de qualificação em gênero para todos os investigadores e policiais que estão nas delegacias. “Já formamos muitas turmas junto com a Academia da Polícia Civil (Acadepol). Não é uma qualificação para ser policial. Para ser policial, você precisa de uma qualificação humana, mas essa qualificação de 2018 é em gênero”, destaca a secretária.
À frente da Secretaria de Política para as Mulheres do Estado da Bahia desde 2017, Julieta Palmeira, que é integrante do movimento de mulheres desde a década de 70, diz que se não houver cuidado, a sociedade “cairá na crença de que é muito desafiador instaurar políticas públicas para mulheres no Brasil”. Por isso, em sua opinião, é tão importante que outras entidades somem ao desafio.
No âmbito da administração municipal, a capital baiana conta com programa Salvador Delas, promovido pela Prefeitura e que englobam iniciativas como o Centro Integrado de Atendimento à Mulher, Infância e Juventude (Ciami Itinerante); a capacitação Por Elas nas Escolas; o caminhão de atendimento médico Salvador + Rosa; o Espaço da Mulher em cada uma das Prefeituras-Bairro; e o Núcleo de Enfrentamento e Prevenção ao Feminicídio (NEF). Já o Comitê Técnico de Enfrentamento à Violência Institucional Contra Mulheres na Prefeitura de Salvador é uma instância colegiada, permanente, de caráter consultivo e deliberativo, presidido pela Secretaria de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ). O órgão disponibiliza a cartilha (download aqui) e o folder (download aqui) de enfrentamento à violência contra a mulher, para capacitar a população sobre o tema.
Protocolo estadual
A vinte dias de terminar o ano de 2020, foi lançado o “Protocolo para Prevenir, Investigar, Processar e Julgar o Feminicídio na Bahia”, para orientar o tratamento dos assassinatos de mulheres por razões de gênero. O documento foi articulado por diversas Instituições da administração pública, como a Defensoria Pública do Estado da Bahia – DEP/BA, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, além de secretarias do Governo do Estado e representações da sociedade civil como a Ordem dos Advogados do Brasil – Bahia, reunidas em Grupo de Trabalho Interinstitucional.
O Protocolo de Feminicídio tem como base o modelo latino-americano para investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio), elaborado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), em colaboração com a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), por meio do Escritório Regional para América Latina e Caribe.
O Grupo de Trabalho Interinstitucional para a criação do protocolo na Bahia foi oficializado em dezembro de 2019. Por mais de um ano, o Grupo promoveu reuniões e debates sob a coordenação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, com a participação de representantes de diversos órgãos.
As Diretrizes Nacionais buscam o aprimoramento da investigação policial, do processo judicial e do julgamento das mortes violentas de mulheres de modo a evidenciar as razões de gênero como causas dessas mortes. O objetivo é reconhecer que, em contextos e circunstâncias particulares, as desigualdades, estruturantes das relações de gênero, contribuem para aumentar a vulnerabilidade e o risco que resultam nessas mortes e, a partir disso, aprimorar a resposta do Estado, em conformidade com as obrigações nacionais e internacionais assumidas pelo governo brasileiro.
“Isso é uma conquista enorme, porque quando uma mulher se dirige a uma delegacia para denunciar uma violência física, se o Boletim de Ocorrência não trouxer dados suficientes para o prosseguimento do processo, ele vai parar no meio de caminho”, explica Julieta Palmeira. Ela defende a necessidade de um modelo de BO que possa subsidiar a investigação. “Muita gente é solta porque o inquérito não dispõe de dados para que se julgue dentro da lei. Isso demora, então, precisa de mais celeridade. O protocolo estabeleceu normas que evitam a impunidade”, afirma.
Onde buscar ajuda
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) produziu cartilhas destinadas ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher: Mulheres na COVID-19 e Enfrentando a violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o órgão, duas coisas são importantes para conter a violência nesse momento: informação e atendimento.
O principal serviço de utilidade pública essencial para o enfrentamento à violência contra a mulher é o Ligue 180. Além de receber denúncias de violações contra as mulheres, a central encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes e monitora o andamento dos processos. O serviço também orienta mulheres em situação de violência, direcionando-as para os serviços especializados da rede de atendimento.
O canal registrou um total de 1,3 milhão de atendimentos telefônicos apenas em 2019. Desse número, 6,5% foram denúncias de violações contra a mulher. Com a pandemia do novo coronavírus, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos ampliou os canais de atendimento do serviço. Nos primeiros quatro meses de 2020, houve um crescimento médio de 14,1% no número de denúncias feitas ao Ligue 180 em relação ao mesmo período do ano anterior.
Fonte: Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres