Quando a mineira Denise Braz, 42, pisou pela primeira vez em solo argentino, em 2012, o estranhamento foi quase imediato. Negra, ela olhou ao redor e só viu pessoas brancas no aeroporto em Buenos Aires. Acompanhada da irmã e de uma amiga, também negras, questionou-se: onde estão os negros?
Nas ruas da capital, viu os primeiros rostos como o seu, em sua maioria, entre vendedores ambulantes. Ao repetir para terceiros a pergunta que fizera a si mesma, a resposta crua foi o segundo choque. “As pessoas diziam: ‘Os negros morreram todos na guerra da independência [1810-1816], de febre amarela. Ou foram mestiçando, desaparecendo, extintos’. Palavras que são usadas para falar de animais”, conta.
Viriam ainda o terceiro, o quarto e vários outros momentos de surpresa e indignação. Em locais turísticos, as três mulheres negras eram olhadas como seres de outro mundo. “Era terrível, queriam tirar foto, tiravam sem permissão, passavam a mão na pele, no cabelo, uma coisa horrorosa”.
As cenas vividas por Braz refletem um processo a que estão sujeitos os negros em quase toda a América Latina. Minoria numérica em 18 dos 20 países que formam a região, os afro-latinos enfrentam situações de racismo cotidiano enquanto lutam para terem sua existência reconhecida por Estados que frequentemente os tratam como invisíveis ou cidadãos de segunda classe.
A maneira como esse apagamento histórico se deu varia entre os países, mas, em geral, pode ser caracterizada por uma série de práticas marcadas pela reprodução de hierarquias raciais, explica Flávio Thales Ribeiro Francisco, professor da Universidade Federal do ABC.
“O que aconteceu na América Latina, particularmente na Argentina, foi um processo, a tentativa de criar uma nação branca, baseada na ideia de que uma nação eurocentrada, cujo perfil racial é branco ou embranquecido, é ideal para o progresso”, diz.
Essas políticas —aplicadas no Brasil por meio do incentivo estatal à migração de trabalhadores europeus— com o objetivo de tornar o país “menos negro” constituíram, segundo Francisco, um imaginário simbólico de um Estado que vai apagando, ao longo da história, a presença de povos negros e indígenas.
Três meses depois da primeira visita à Argentina, Braz voltou ao país, dessa vez para cursar mestrado em antropologia na Universidade de Buenos Aires. Viveu, então, episódios de racismo ainda mais escancarados.
No único elevador que levava ao andar onde assistia às aulas, deparou-se com um cartaz que, entre outras injúrias homofóbicas e antissemitas, dizia que “o mundo seria melhor sem a negra” —escrito no singular e no feminino, como um recado direto a ela, a única aluna negra da pós-graduação no campus.
Esperando um ônibus nas ruas de Buenos Aires, recebeu uma cusparada de um homem desconhecido que a chamou de “negra de merda”. Braz viveu ainda um episódio de violência sexual, que atribui à hiperssexualização da mulher negra, particularmente a do Brasil. O taxista que a assediou disse que nunca havia experimentado uma “negrita brasileña”.
Além do diploma do mestrado e do engajamento em causas feministas, a antropóloga conta que leva da Argentina a percepção de que o país ainda carrega uma imagem muito primitiva e colonial dos indivíduos negros. “Para eles, somos só um corpo.”
Parte dessa visão encontrou eco em declaração do presidente Alberto Fernández, em junho. Em um evento com o premiê espanhol, ele disse que “os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva, e nós [os argentinos], chegamos em barcos”, em referência à sua ascendência espanhola.
Para Francisco, da UFABC, sociedades como a argentina, celebram sua “blanquidad” em detrimento das populações afro-latinas e originárias, que estariam, segundo a lógica racista, fadadas a desaparecer por serem uma herança arcaica.
Já em países como a Colômbia e o Peru, a invisibilização dos sujeitos negros se dá por meio do isolamento geográfico. Há territórios onde os afro-latinos se concentram e celebram sua cultura e suas raízes, mas isso não se reflete no imaginário nacional.
“E existe o caso do Brasil, em que há uma disputa de narrativas. De um lado, quem diga que a capoeira ou o samba são elementos-chave da cultura nacional; de outro, ativistas negros que vão dizer que são elementos de uma história de resistência negra.”
Segundo o especialista, as relações raciais afro-latinas se diferem da retórica de pureza racial vista em lugares como Estados Unidos e África do Sul, mas isso não significa que tenham sido menos perigosas para indivíduos negros.
Depois de deixar a Argentina, Braz iniciou o doutorado na Universidade do Texas, nos EUA. O estado fica na região sul do país, historicamente marcada pelas cicatrizes da segregação racial. Lá, ela vive em Austin, cidade que vem mudando seu perfil demográfico a partir da chegada de imigrantes e está se tornando menos conservadora nesse sentido.
Ainda assim, a antropóloga viveu mais um episódio em que temeu por sua segurança devido à cor da pele. Em 6 de janeiro, quando o então presidente Donald Trump convocou apoiadores e os insuflou a atacar o Capitólio, em Washington, seus seguidores no Texas fizeram manifestações antidemocráticas na sede do Legislativo local.
Braz foi avisada por amigos de que não era seguro sair de casa naquele dia, mas não recebeu os alertas a tempo. Ao voltar de um supermercado, foi surpreendida por trumpistas brancos armados. Uma mulher, que carregava uma bandeira confederada, símbolo dos estados americanos que defenderam a manutenção da escravidão durante a guerra civil, dirigiu à brasileira uma série de impropérios. Ela não compreendeu o que era dito, mas o tom de voz e a expressão deixavam claro que uma imigrante negra não era bem-vinda para aquele grupo. A intimidação, na ocasião, parou por aí.
“Os americanos racistas defendem sua branquitude como uma propriedade, um patrimônio que eles defendem a qualquer custo, embora não esteja muito claro de quê”, afirma. “Aqui você pode ter um vizinho racista e ele vai ter uma arma.”
Lucas Alonso / Folha de São Paulo