Legislação ampliou a presença de pretos, pardos e indígenas nas universidades, com aumento de 31% para 52%
Após 10 anos desde a sua criação – completados amanhã, 29 de agosto -, a Lei de Cotas deve passar por uma revisão este ano. Entre propostas no Congresso que a ampliam e outras que a reduzem, o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas – com especialistas da Ufba, UFRJ, UNB, UFMG, UFSC, Unicamp e Uerj – divulgou conquistas que a Lei 12.711 ajudou a alcançar: de 2001 a 2020 a presença de pretos, pardos e indígenas matriculados em universidades públicas no Brasil passou de 31% para 52% do total de estudantes, e os de classe C, D e E de 19% para 52%.
Pioneiras em criar vagas exclusivas para determinados grupos, as universidades baianas já tinham sistema de cotas bem antes da Lei de Cotas ser instaurada em 2012 – 2002 na Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e 2005 na Universidade Federal da Bahia (UFBA) -, e foi um pouco depois disso, em 2009, que a hoje museóloga Lorena Lacerda entrou na Ufba através das cotas raciais. “As pessoas negras e estudantes de escolas públicas não conseguiam vislumbrar um futuro nas universidades, pois o que estava imposto para nós era um mundo sem perspectivas outras que não os subempregos. As cotas reacenderam os nossos sonhos, ampliaram as nossas visões de mundo e transformaram as nossas narrativas quanto ao presente-futuro”, afirma.
Em um país onde 54% da população é de negras e negros, foi só a partir da lei e das politicas públicas agregadas a ela que as universidades brasileiras, historicamente majoritariamente brancas, que se tornou possível enegrecer esses espaços para que eles pudessem refletir melhor a composição populacional do país. “As cotas são um mecanismo de potência para estudantes negras e negros cursarem a graduação e permanecerem na carreira acadêmica, para que também ingressem como docentes em universidades públicas. A Lei de Cotas é uma reparação social e histórica para pessoas negras que estavam excluídas estruturalmente desses espaços”, enfatiza Lorena.
Uma das coordenadoras do Consórcio de Acompanhamento de Ações Afirmativas, a professora adjunta da Ufba e pesquisadora do programa A Cor da Bahia (Ufba) Edilza Sotero explica que o consórcio reúne informações de instituições estaduais e federais de todo o país, e esse conjunto de dados deve contribuir para a revisão da Lei de Cotas, já que o próprio Ministério da Educação não realizou nenhuma análise do tipo até o momento. Mas atenção: a revisão da lei é uma recomendação da Justiça, não uma obrigatoriedade, e isso faz com que o período de revisão seja flexível. Até o momento a data da revisão da Lei de Cotas não foi definida, e pode ser adiada por meses ou anos.
“Qualquer modelo de revisão que proponha reduzir o percentual de vagas, precisa de dados que embase isso, ou é apenas arbitrariedade. O que produzimos até agora segue reafirmando o que já era pensado lá no início dos anos 2000: as ações afirmativas são importantes para que essas pessoas entrem nas universidades e uma vez lá dentro, eles mostram toda a sua potência. A inclusão de negros, indígenas e demais classificações não muda apenas ‘a cara’ das universidades por meio da diversidade racial e social entre seus estudantes, mas também diversifica a sua produção e os espaços de poder ocupados dentro da própria sociedade”, explica Edilza.
Representação
Ter pessoas iguais a si dentro da sala de aula é essencial, afirma a produtora cultural Evani Cristina Santos de Oliveira, que está concluindo o Bacharelado Interdisciplinar em Artes da Ufba, onde entrou através das cotas raciais em 2021. “Não ser a única pessoa preta da turma me dá muita força para combater o racismo estrutural, um assunto que as pessoas que ainda hoje acham que as cotas não deveriam existir precisam pesquisar, assim como a história do povo preto no Brasil. Esse histórico de ausência de oportunidades iguais precisa ser reparado e o sistema de cotas está aqui para que esse reparo seja feito”, pontua.
É preciso olhar para a história do país e entender que a população negra e as pessoas descendentes de escravos sofrem com as consequências desse período até os dias atuais, salienta a professora Laíse Neres, que entrou no curso de Ciências Sociais da Ufba em 2006, através das cotas raciais. “O que falta para as pessoas que são contra as cotas é o mínimo de letramento racial. Quando entrei na universidade aos 18 anos, ela era bastante embranquecida e de classe média, enquanto eu cheguei como a mulher negra periférica que sou até hoje. A escravidão no Brasil foi abolida há menos de 200 anos e ainda estamos lutando por direitos e espaço, à medida em que a Lei de Cotas tem contribuído para que a gente saia da miserabilidade e subalternidade”, argumenta.
Reitora da Uneb, Adriana Marmori conta estar vivenciando as mudanças nas produções universitárias a partir do olhar dos cotistas. “Não podemos retroceder conquistas, a Lei tem dez anos e com o ingresso desses estudantes temos percebido um aumento das produções que falam sobre essas pessoas falando sobre elas mesmas: negro falando de negro, indígena falando de indígena e pessoas com deficiência falando de pessoas com deficiência, não terceiros estudando sobre eles. E isso é muito importante. É um sistema que precisamos defender, pois ele segue a ideia de uma sociedade que queremos ter, com equidade e justiça social”, salienta.
Os últimos dez anos foram importantes para justificar a existência das cotas, afirma a titular da Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi), Fabya Reis. O desempenho e o currículo dos alunos cotistas têm desmistificado qualquer consideração negativa que os contrários ao sistema possam ter. “O racismo não é brincadeira em nosso país. A Lei de Cotas democratiza o espaço universitário e deve efetivamente continuar existindo para que possamos superar o racismo estrutural. Penso que a sociedade já identificou os ganhos da Lei, e os próprios estudantes se unem em defesa dela. E por mais que a autonomia das universidades às permita continuar com as vagas para cotistas, com ou sem lei, é importante ressaltar a importância da existência dela, pois não sabemos quem estará atrás da cadeira das reitorias no futuro”, enfatiza.