A eleição de 2024 será “a de 2022 com roupa nova” e poderá servir de laboratório para a de 2026, na avaliação de organizações da sociedade civil que atuam em defesa do sistema eletrônico de votação, contra a desinformação e pelo engajamento democrático. O clima é de apreensão.
No cenário traçado pelas entidades, o pleito municipal será um teste, depois de uma eleição presidencial marcada por intensa polarização entre Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL) e tumultuada com desconfiança sobre as urnas eletrônicas, violência política e contestação do resultado.
Os alertas são lançados por grupos como Pacto pela Democracia (rede com 200 organizações), Transparência Eleitoral Brasil e Politize!. Além de apontar problemas e gargalos, as entidades têm iniciativas para qualificar o debate e colaborar com autoridades, mas admitem dificuldades.
Representantes de movimentos que intensificaram suas atividades em 2022 –diante das dúvidas inverídicas lançadas por Bolsonaro e das ameaças dele de não reconhecer o resultado e tramar um golpe de Estado– afirmam que o sistema saiu fragilizado.
“O pleito deste ano acontece depois das eleições mais delicadas e decisivas para a democracia no Brasil, num contexto em que o ambiente segue muito imerso em desafios e ameaças”, diz a coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia, Flávia Pellegrino.
Uma das metas para 2024 é combater discursos de descredibilização das urnas eletrônicas.
Especialistas dizem que não tem se repetido a onda de mensagens sobre o assunto que inundou redes bolsonaristas no ciclo eleitoral passado, mas acreditam que a pauta possa ser retomada caso os pleitos municipais repitam a polarização entre candidatos de Lula e Bolsonaro e haja um acirramento.
O que preocupa é a infiltração do ceticismo em parte da sociedade, como vêm mostrando levantamentos.
Segundo pesquisa da empresa Quaest feita entre os dias 2 e 6 deste mês, 35% dos brasileiros concordam que as urnas foram fraudadas em 2022 para favorecer Lula. Apesar do índice elevado, a maioria da população (56%) discorda dessa afirmação, e 1% não opinou.
“Temos visto dados estarrecedores”, diz Flávia. “A pergunta é como essa nova realidade vai ser mobilizada no pleito municipal. Isso ainda não está claro”, segue a jornalista e mestre em ciência política, citando a “ascensão da extrema direita e do campo antidemocrático no país”.
A ideia de que os resultados eleitorais possam não ser legítimos acaba minando, aos poucos, a confiança nas instituições e no processo de escolha dos governantes, analisa ela. “Ter discursos infundados ecoando de maneira tão ampla é perigoso para a democracia. Reverter isso é complexo e não existe bala de prata.”
Para Ana Claudia Santano, coordenadora da Transparência Eleitoral, o resgate da confiança nas urnas é uma tarefa pendente para 2024 e que precisa estar no horizonte de 2026.
Ela afirma que é preciso pensar em alternativas porque campanhas de esclarecimento conduzidas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) têm tido alcance limitado, já que a Justiça Eleitoral “perdeu capacidade de comunicação com todos os grupos sociais” e sofre resistência de certos segmentos.
“Ainda não nos sentimos confortáveis para tirar do radar a questão da desconfiança na urna”, diz a professora de direito e ativista. “Por causa da politização do tema, penso que campanhas de informação devam ser perenes, porque não é fácil reduzir essa lacuna de uma hora para outra.”
Para Flávia, do Pacto, o 8 de janeiro foi resultado de uma série de medidas para corroer as bases da democracia e evidenciou o alto risco de radicalização na sociedade brasileira. Ela afirma que o esforço maior agora deve ser para garantir continuidade e estabilidade democráticas no país.
“Nós vivemos nos últimos anos um ataque explícito e sistemático às instituições”, diz.
“Alguns dos maiores alvos do bolsonarismo foram justamente o sistema eleitoral e o TSE. O processo de desinformação foi a grande aposta para a tentativa de virada de mesa e de manutenção do Bolsonaro no poder, semeando descrédito para que pudesse questionar o resultado e mobilizar apoio popular.”
Na visão de Luiza Wosgrau Câmara, da Politize!, o problema é mais amplo. “Hoje há uma parcela grande da população que descredibiliza e tem uma visão estigmatizada da política. A tecnologia trouxe desafios ao colocar as pessoas em bolhas informacionais e sob vieses de confirmação”, diz.
A organização da qual Luiza é porta-voz atua justamente no ambiente digital para difundir conteúdos didáticos e diz ter projetos com oito governos estaduais para levar conhecimento a professores e estudantes –já atingiu 180 mil adolescentes e adultos com oficinas de educação política.
Segundo ela, a intenção é fazer com que os eleitores votem “de forma consciente e bem informados”.
A Politize! também fez campanhas nos últimos meses para incentivar a retirada e regularização do título eleitoral. Em São Paulo, uma coalizão com a participação do Instituto Lamparina e do labExperimental distribuiu sorvetes em cartórios eleitorais para estimular o alistamento de jovens.
Também na trincheira de medidas práticas, o Pacto pela Democracia vem fazendo nos últimos meses reuniões com os parceiros. Ficou decidido que as prioridades para este ano são o combate à desinformação e a recuperação da credibilidade das urnas, pensando num ciclo contínuo até 2026.
Segundo Flávia, a ordem é usar o pleito para reforçar que o sistema é seguro e traçar estratégias que cheguem até a próxima eleição geral. Pelo plano, será estabelecida uma agenda de trabalho “coordenada, criativa e bastante assertiva”, em colaboração também com a Justiça Eleitoral.
Outro pleito é reivindicar espaços permanentes de participação da sociedade civil no TSE, para que a interlocução seja mantida mesmo com mudanças no comando da corte. O tribunal, que a partir de junho será presidido pela ministra Cármen Lúcia, terá Kassio Nunes Marques à sua frente em 2026.
A Transparência Eleitoral terá em algumas cidades missões de observadores, formadas por acadêmicos e voluntários, para monitorar a integridades das eleições e a prática de ilícitos como compra de voto. A porta-voz do grupo lembra que 2020 marcou o prenúncio da narrativa crítica às urnas.
“Ao olharmos de perto o que se passará neste ano, podemos ver o que nos espera em 2026 e atuar para evitar os piores cenários, mas estamos esperando algo tão desafiador quanto 2022”, diz Ana Cláudia. “Os discursos mais extremistas não desapareceram, muito pelo contrário.”
Joelmir Tavares / Folhapress