Armas de fogo, fardas, distintivos e até vídeos disparando com metralhadoras são postagens cada vez mais comuns nas redes sociais de policiais civis pelo Brasil, que usam seus perfis para mostrar o que consideram o glamour da profissão.
As influenciadoras são agentes e até investigadoras da polícia, e podem estar transgredindo leis e códigos de conduta ao utilizar materiais e símbolos das corporações em benefício próprio. Elas também costumam mostrar suas vidas pessoas nas redes, incluindo fotos de viagens, restaurantes e passeios.
Uma delas é a ex-agente da Polícia Civil de Pernambuco Gabriela Queiroz (foto), que acumula 234 mil seguidores em seu perfil no Instagram. A maior parte das publicações remetem à época em que trabalhava na instituição, embora hoje atue como analista no TRE-BA (Tribunal Regional Eleitoral da Bahia).
Nos treinamentos em escolas de tiro, estava frequentemente acompanhada de outras policiais. O grupo costuma gravar vídeos disparando armamentos que vão desde pistolas até metralhadoras. O perfil também tem fotos de lazer, em viagens e restaurantes, além de selfies.
A Polícia Civil de Pernambuco, assim como a maior parte das corporações brasileiras, não possui uma resolução que instrui os servidores sobre como devem se comportar nas redes sociais, estabelecendo limites sobre o que deve ou não ser compartilhado. Em nota, a corporação disse que está trabalhando em uma regulamentação para orientar os policiais sobre a utilização do uso de símbolos da instituição.
A servidora foi procurada via email, mas não se manifestou até a publicação da reportagem.
Presença frequente nas fotos de Queiroz, a investigadora da Polícia Civil de Minas Gerais Nathália Bueno possui 177 mil seguidores, e tem como um dos principais atrativos as dicas e frases motivacionais para aqueles que desejam passar nos concursos da polícia.
Os seguidores que desejarem ir além podem ainda comprar um curso preparatório com a investigadora. Em nota, a Polícia Civil de MG afirmou que publicou internamente em maio de 2020 instruções sobre as publicações em redes sociais, sob pena de transgressão disciplinar. A investigadora foi procurada via email, mas não se manifestou.
A agente Adrielle Vieira, de Alagoas, acumula 140 mil seguidores em seu perfil no Instagram em uma conta que segue a mesma receita: armas e lazer. A servidora também usa seu perfil para fazer publicidade de sua própria marca, uma loja online que oferece produtos femininos, entre eles, um colar com pingente de algemas.
O Artigo 88 do Estatuto Pessoal da corporação proíbe os membros da instituição de “valer-se do cargo para lograr proveito pessoal em detrimento da dignidade da função policial”.
A Polícia Civil de Alagoas afirma, por meio da Corregedoria da instituição, que já possui um procedimento administrativo aberto para investigar e apurar a responsabilidade funcional da agente. A servidora foi procurada pelas redes sociais, mas também não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Embora na esfera administrativa as leis que regem as polícias civis fiquem por conta dos estados, na esfera criminal os servidores podem ser autuados dentro do Código Penal e pela Lei da Improbidade Administrativa, explica a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e professora de direito do Insper Ivana David.
A magistrada afirma que constitui ato de improbidade administrativa quando o servidor se utiliza do cargo público para obter vantagens, como utilizar materiais do estado em atividades pessoais de qualquer natureza.
“A impressão é que estão treinando e usando material da polícia fora dos limites administrativos, expondo a instituição. A improbidade só existe com uso das armas, uniforme, viatura e munição da polícia. Uso de bens particulares, ainda que parecidos, não configuram”, explica David. “Se for o caso, o Ministério Público e as corregedorias têm que tomar providências”.
Segundo o procurador de Justiça Marcio Sergio Christino, os servidores não podem explorar a imagem do estado para auferir ganho pessoal. O promotor afirma que os policiais têm direito à liberdade de expressão, desde que não vincule sua imagem à condição de membro de uma instituição.
“O indivíduo não pode usar o estado para se autopromover”, diz o procurador. “O que não pode ou não deve é usar a instituição como um meio para auferir ganhos, usando a imagem da instituição, que não é dele. A imagem é do estado. A condição de policial não é dele, a condição de policial é do estado.”
Quando não há regulamentação específica, os servidores se baseiam apenas nos códigos de ética ou leis orgânicas das polícias de cada estado, muitas vezes criados antes da popularização das redes sociais. Isso abre brecha para novos perfis como esses ou como o notório caso do delegado da Cunha, afastado do cargo após uma série de polêmicas que envolviam sua atuação na internet.
Um dos poucos que estabeleceu diretrizes de uso do ambiente digital foi São Paulo, onde atua a investigadora Paula Barreira.
A servidora possui um perfil com 87 mil seguidores nas redes sociais. Em sua apresentação pessoal, a investigadora informava que era parte da corporação, o que já transgredia as regras para redes sociais da Polícia Civil de SP.
É vedado aos servidores paulistas possuir um perfil de natureza institucional ou que induza os usuários a acreditar que seja uma conta funcional, utilizar qualquer fração do nome da organização, além de mostrar o brasão ou símbolos oficiais, por exemplo.
Além das fotos com insígnias da polícia, distintivos e armas, Barreira também faz publicidade em suas redes. Em uma delas, oferece um cupom de desconto para uma linha de coldres (estojos, normalmente presos à cintura, onde se guardam armas de fogo).
Após o contato da reportagem, as postagens relacionadas à polícia foram apagadas e sua apresentação pessoal editada para “perfil pessoal sem vínculo institucional”.
A investigadora afirma que seus seguidores se formaram ao longo de nove anos que antecederam o ingresso na corporação, quando compartilhava sua admiração pela segurança pública. Declara também que as postagens relacionadas a sua atuação foram devido ao “orgulho e satisfação profissional”.
A Secretaria de Segurança Pública de SP declara, em nota, que todas as denúncias sobre uso inadequado das redes são apuradas, inclusive a citada na reportagem.
Para a socióloga e pesquisadora do Nev (Núcleo de Estudos da Violência) Giane Silvestre os perfis são um reflexo da lógica militarizada de se fazer segurança pública, vendendo a ideia de que sua eficácia é baseada somente no enfrentamento, deixando de lado políticas preventivas.
“Talvez essa coisa bélica, essa coisa mais instrumentalizada seja um recurso usado para se legitimar enquanto operadoras de segurança pública dentro dessa ideia de que segurança pública tem que ser uma coisa militarizada”, diz.
Para uniformizar o comportamento dos policiais civis nas redes sociais, o Conselho Nacional de Chefes de Polícia está criando um código de ética nacional e uma resolução exclusiva que fixará limites para o que podem ou não publicar.
À reportagem, a presidente do conselho, delegada Nadine Anflor, disse que “não tem como não ser feito” uma regulamentação que determine diretrizes nacionais, uma vez que todos os estados apresentaram problemas.
Victoria Damasceno/Folhapress