Houve batalha e mortes no Convento da Lapa
Na Bahia ocorreu uma espécie de independência paralela ao resto do país. Confrontos começaram antes, no 19 de fevereiro de 1822, e terminaram depois da data comemorada nacionalmente.
Há cerca de 200 anos os baianos cantam no 2 de Julho que “nunca mais o despotismo regerá nossas ações”. A Independência do Brasil na Bahia foi conquistada após muitas batalhas, que duraram cerca de 1 ano e meio, e a primeira delas, dentro do Convento da Lapa, em Salvador, aconteceu no dia 19 de fevereiro de 1822.
Na Bahia ocorreu uma espécie de independência paralela à do Brasil. A luta começou antes, no 19 de fevereiro de 1822, e terminou depois da data comemorada nacionalmente, o 7 de setembro de 1822.
Os baianos só se tornaram independentes em 2 de julho de 1823, 10 meses após o grito de independência de dom Pedro I. Para isso, foram muitos confrontos sangrentos, em diversas partes do estado, que na época era uma província.
Os poucos portugueses que ficaram no país após o 7 de setembro de 1822 se amontoaram na Bahia. O jornalista e escritor Fernando Granato acredita que a província foi escolhida por estratégia geográfica, além das riquezas, por causa dos engenhos e açúcar, muito forte principalmente no recôncavo.
“A grande festa que se comemora é o 2 de julho, só que essa história toda começou no 19 de fevereiro de 1822, há 200 anos portanto. Havia um clima de descontentamento muito grande com Portugal, não só na Bahia, mas em várias províncias, que tinham a intenção de separar o Brasil de Portugal”, conta Fernando Granato.
O governo da Bahia, os brasileiros, queriam cada vez mais a independência. De acordo com o jornalista, já existia alguma autonomia, mas Portugal resolveu tirar o comandante de armas da província, Manuel Prata, que era um brasileiro, e colocar o português brigadeiro Madeira de Melo, no lugar.
“Isso foi o estopim do descontentamento e a partir daí os ânimos se acirraram e começou um conflito armado”.
Essa história é contada com mais detalhes em um dos capítulos do livro de Fernando Granato: “Bahia de Todos os Negros. As Rebeliões Escravas do Século XIX”, lançado no final de agosto do ano passado.
19 de fevereiro há 200 anos
Muitas pessoas passam todos os dias na frente do Convento da Lapa e sequer imaginam que aquele local, cercado por um alto muro branco, foi palco da primeira batalha sangrenta pela independência do Brasil, que terminou com muitas mortes.
Brasileiros atiradores se esconderam dentro do convento e foram mortos por portugueses, que invadiram o local. Além deles, muitos civis, entre eles a abadessa Joana Angélica, também foram mortos.
“Nesse ataque, mataram alguns civis, entre eles uma abadessa, que era a coordenadora do convento, que era uma pessoa muito querida na Bahia, chamada Joana Angélica. Ela morreu nesse ataque”, disse o escritor.
Ao lado da porta onde Joana Angélica foi morta, uma placa do Instituto Geográfico da Bahia foi instalado em homenagem a ela. No entanto, com uma falha, apesar de exaltar a abadessa com uma heroína, a data do confronto está errada, 20 de fevereiro de 1822.
No domino (20), uma missa em tributo a Joana Angélica será feita no Convento da Lapa, às 10h. O Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, Cardeal Dom Sergio da Rocha, presidirá a Santa Missa no local onde estão os restos mortais da religiosa. A avenida onde está localizado o convento também recebeu o nome da religiosa.
Desejo de mudança
Sem perder tempo, ainda no 19 de fevereiro de 1822, horas após o ataque dos portugueses ao convento, os baianos se reuniram a 2,7 km de distância, no Forte de São Pedro, que fica no bairro do Campo Grande.
Os ânimos da população da Bahia em relação aos portugueses estavam acirrados. No local, os baianos comandaram as estratégias de resistência contra Portugal.
“A população em geral, sobretudo os negros da Bahia, tinham um descontentamento muito grande com os portugueses. O comércio da cidade era quase todo controlado pelos portugueses e eles atribuíam a eles a carestia dos produtos básicos, o racismo”.
Pedradas em procissão
Na reunião feita no Forte de São Pedro, foram definidas estratégias pra expulsar os portugueses de todos os cantos da Bahia. Um mês depois do ataque ao convento e do encontro, a Ladeira da Conceição da Praia, que fica ao lado da Basílica Santuário Nossa Senhora da Conceição da Praia, foi o cenário de maior destaque.
Em 19 de março de 1822, uma procissão de portugueses, em homenagem a São José, se tornou alvo dos brasileiros. O grupo foi recebido por pedradas da população negra, sobretudo crianças.
“Só tinha portugueses, em grande maioria mulheres, senhoras portuguesas. Havia muitos moleques em situação de ruas, negros, que estavam totalmente revoltados com os portugueses e planejaram o ataque de pedradas”, afirma Fernando Granato.
Muitas pessoas que estavam na procissão ficaram feridas na ladeira. A ação terminou com 30 negros presos.
“As crianças fugiram e foi uma mostra de que não era só o Exército, não era só as autoridades, a população também estava totalmente engajada na luta”, disse o escritor.
A Basílica Santuário Nossa Senhora da Conceição da Praia servia à época para batizar as pessoas escravizadas quando chegavam na Bahia. Os africanos chegavam no porto, que ficava em frente, e eles eram obrigados a serem batizados na religião católica.
“Esse foi um dos motivos, para que em 1825, tivesse a Revolta dos Malês. Esse foi um dos motivos pelos quais eles se revoltaram e tentaram assumir o poder, pois eles queriam seguir a religião muçulmana deles”, conta o jornalista e pesquisador.
Período de guerra
Entre 19 de fevereiro de 1822 e 2 de julho de 1823, muitos escravizados fugiram das fazendas para se alistar e lutar junto com as tropas brasileiras. Após o final da guerra, o Governo Imperial consentiu anistia para parte deles serem libertos, por serem “heróis de guerra”.
As tentativas de libertar os escravizados para que eles pudessem, formalmente, aderir ao Batalhão Brasileiro, contaram com muita resistência dos senhores de engenho.
“Os [negros] que conseguiram, fugiram e se alistaram por conta própria. Houve uma adesão imensa de negros libertos já nascidos no Brasil. Chamavam até de Partido Negro, que participou fortemente da batalha”, explicou Fernando.
A elite baiana não participou das lutas, fugiu para o a área nobre da província, no recôncavo baiano.
“Como Salvador ficou sediada e dominada pelos portugueses, a elite, os senhores de engenho, fugiram para o recôncavo. Ficaram resistindo mesmo, a população negra, que formava majoritariamente a maior parte da população. Eles que resistiram”, conta o jornalista.
Guerras por toda parte
Outro ponto importantíssimo da batalha pela independência na Bahia foi a Ilha de Itaparica. Ela era um local estratégico, porque era onde entravam as tropas portuguesas.
“Havia uma forte adesão dos negros ajudando a vigiar. Ali tem uma figura mítica, que era a Maria Felipa”, recordou.
Não existe nenhum documento que mostre a trajetória de Maria Felipa, que virou um mito. Até onde se sabe, a baiana era uma saveirista, que tinha uma forte liderança da população da Ilha de Itaparica.
“Ela regimentou um batalhão para ficar exatamente vigiando a ilha, para quando houvesse a chegada dos portugueses, ela avisar aos brasileiros”.
A famosa Batalha de Pirajá, na entrada de Salvador, também é bastante lembrada nos livros de história. O embate foi o mais sangrento durante o período de tentativa da independência.
“Foi quando finalmente as tropas brasileiras conseguiram vencer”, disse o escritor.
Os historiadores não estimam a quantidade de mortes durante o período de guerra por independência na Bahia.
O que se sabe é que nos três primeiros dias de batalha, que seguiram depois do ataque ao Convento da Lapa, cerca de 300 pessoas morreram pelas ruas de Salvador, entre portugueses e brasileiros.
“Muita gente morreu. Foi uma batalha muito sangrenta, que durou um ano e meio”, contou Fernando Granato.
Pós-guerra e festa
Na época, Salvador não produzia alimentos. Os brasileiros que estavam sobretudo no recôncavo baiano agiram pra que a capital ficasse desabastecida e o resultado foi o caos: falta de comida e as tropas portuguesas não conseguiram uma solução para o problema.
“O governo brasileiro chamou um líder francês Labatut para coordenar as tropas brasileiras, que vieram de outros estados, entraram em Salvador, e conseguiram reaver a cidade. Os portugueses que sobraram foram embora para Portugal”, contou Fernando Granato.
Depois que os últimos portugueses deixaram a Bahia houve uma festa imensa, que até hoje é comemorada no estado em todo 2 de julho.
A comemoração da data em Salvador não contou com o tradicional e secular desfile dos carros do caboclo e da cabocla, nos últimos dois anos, por causa da pandemia da Covid-19.
O período de festa também não durou muito, porque o Império se instalou no Brasil, Dom Pedro I foi embora e deixou o filho como príncipe regente, Dom Pedro II. Ele ainda era crianças e ainda não poderia assumir completamente o trono.
O período da regência também foi um período de descontentamento para os baianos, porque o Império continuou com atos semelhantes aos que Portugal fazia.
“Sugavam as províncias cobrando impostos altíssimos. O descontentamento na Bahia continuou embora não fosse governada por Portugal, fosse governada pelo imperador, que estava no Rio de Janeiro”, explicou o escritor Fernando.
Os baianos também tentaram um outro movimento separatista, desta vez, entre a província e o Império, em 1827. O embate é conhecido com a “Sabinada”.
A revolta foi liderada pelo rebelde Francisco Sabino, que organizou também as forças militares descontentes. A batalha durou pouco mais de quatro meses, dessa vez com derrota dos baianos.
“Eles tomaram a cidade novamente, tentando expulsar os soldados que eram ligados ao Império, que estavam no Rio de Janeiro. Acabaram perdendo e as forças imperiais voltaram a dominar a Bahia, mas houve outro movimento separatista”.
Duzentos anos após a primeira batalha, as ruas de Salvador seguem respirando história de um povo destinado a lutar. “Com tiranos não combinam, brasileiros, brasileiros corações”.
Por João Souza, g1 BA