Em três anos e cinco meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) aproveitou uma série de feriadões, folgas autoconcedidas e dias de expediente normal para converter em lazer ou praticar atividades sem relação exata com o cargo que ocupa.
Temporadas nos litorais paulista, catarinense e baiano, idas a jogos de futebol, “motociatas”, cavalgadas, “jeguiatas”, “lanchaciata” e afins produziram uma profusão de imagens do presidente conduzindo jet skis, motos, cavalos, se divertindo em camarotes de estádios de futebol, parques de diversão, restaurantes ou aproveitando um dia de sol nas praias do litoral brasileiro.
Um desses dias de lazer ocorreu em março de 2020, quando passeou de jet ski no Lago Paranoá, em Brasília, no mesmo dia em que o país superava a barreira de 10 mil mortos pela Covid (hoje são mais de 660 mil), o que motivou decretação de luto pelas cúpulas do Legislativo e do Judiciário.
De acordo com a mais recente pesquisa do Datafolha, 48% da população reprovam a sua gestão.
Em várias dessas escapadas, e apesar de se tratar de um dia útil, ou seja, de trabalho normal, Bolsonaro não participou publicamente de quase nenhum compromisso relacionado claramente ao exercício da Presidência.
Foi o que ocorreu na última sexta-feira (27), por exemplo.
Ele embarcou para Goiânia por volta das 9h, participou de um encontro evangélico e de uma “motociata”, ato em que ele pilota uma moto —geralmente sem capacete (nesta sexta usava a proteção obrigatória, mas o carona, o deputado Vitor Hugo, do PL de Goiás, não)—, liderando uma série de apoiadores, também em motos.
Na capital goiana, Bolsonaro teve breves encontros com políticos e simpatizantes, entre eles o cantor Latino. No início da tarde, já estava de volta a Brasília. Sua agenda não informava nenhum compromisso de trabalho durante a tarde. À noite, participou da sua tradicional live semanal, no Palácio da Alvorada.
Nesses quase três anos e meio, Bolsonaro deixou Brasília 15 vezes para curtir folgas e feriadões nos litorais paulista, catarinense e baiano.
Ele embarcou 11 vezes para o Forte dos Andradas, em Guarujá (SP). Em outras três ocasiões, usou o Forte Marechal Luz (SC). Seu primeiro descanso na Presidência longe de Brasília foi nas festas de fim de ano de 2019, na base naval de Aratu, na Bahia.
No mesmo período de sua primeira gestão, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) folgou em três ocasiões. Dilma Rousseff (PT), em sete.
No Carnaval de 2022, por exemplo, Bolsonaro demonstrou irritação ao ser questionado sobre suas temporadas no litoral. “Se achar que eu não devo sair mais de folga, se eu virar candidato à reeleição, que não vote em mim, aí eu não vou estar mais aqui no hotel.”
O presidente havia sido questionado na ocasião sobre os gastos resultantes de sua viagem de férias a Santa Catarina dois meses antes, no fim do ano, que custaram quase R$ 900 mil aos cofres públicos, de acordo com dados do governo fornecidos ao jornal O Globo por meio da Lei de Acesso à Informação.
À época, Bolsonaro manteve a folga mesmo com a Bahia enfrentando uma crise gerada por fortes chuvas, que deixaram mais de 20 mortos. Em situações como essas, é comum governantes suspenderem momentaneamente ou cancelarem folgas para acompanhar ou atuar diretamente no caso.
Suas atividades no litoral catarinense, na época, incluíram uma visita ao parque Beto Carrero World, onde curtiu show de derrapagens e, vestido com o uniforme da Hot Wheels, dirigiu um dos veículos e fez manobras.
Dias antes, quando estava em Guarujá, Bolsonaro havia feito passeios de lancha com dança de funk, pastel em feira livre e pescaria em uma ilha conhecida por répteis perigosos.
Ele até chegou a interromper as férias, mas para se internar por supostamente não ter digerido bem uma porção de camarões. Na saída do hospital, voltou a se manifestar sobre as críticas.
“Fizemos coisas fantásticas ao longo desses dias que dificilmente outro governo estaria fazendo. O presidente não tem férias. É maldoso quem fala que estou de férias. Eu dou minhas fugidas de jet ski. Dou lá uns cavalos de pau no Beto Carrero.”
O ano de 2020 foi o que Bolsonaro mais aproveitou férias e feriadões, nos fortes dos Andradas, em Guarujá, e Marechal Luz, em Santa Catarina. Ele curtiu por lá alguns dias em janeiro, Carnaval, feriados de Nossa Senhora Aparecida, Finados, folga de fim de ano e Réveillon.
Outra distração bastante apreciada pelo presidente são os jogos de futebol. Ele já foi seis vezes ao camarote do estádio Mané Garrincha, em Brasília, a todos os principais estádios de São Paulo, além de Maracanã e Mineirão, quase sempre acompanhando de ministros e assessores.
Ele também costuma prestigiar jogos amadores e beneficentes. Em um deles, jogou por alguns minutos na Vila Belmiro, no final de 2020, ocasião em que os adversários permitiram que ele fizesse um gol, completando um cruzamento e caindo de barriga na grama no momento seguinte.
Bolsonaro também tem intensificado a participação em motociatas e atividades do gênero em praticamente todos os estados do Brasil (e também em Doha, durante sua visita ao Qatar), vários deles em dias de semana. Já foram mais de 30 em sua gestão, sendo 19 só neste ano.
Em 25 de abril, por exemplo, iniciou o expediente da semana pós-feriado com uma motociata e uma cavalgada em Ribeirão Preto (a 313 km de São Paulo).
Até o final do ano passado, as motociatas em apoio a Bolsonaro já haviam custado ao menos R$ 5 milhões aos cofres públicos, de acordo com pedidos via Lei de Acesso à Informação feitos pela Folha.
Levantamento feito pela Folha em sua agenda oficial mostra que Bolsonaro teve 48 dias úteis sem nenhum compromisso oficial nesses quase três anos e meio, já descontados os dias em que ele passou internado em decorrência de cirurgias e tratamentos da tentativa de assassinato sofrida na campanha de 2018. Em outros 69 dias úteis, só houve compromissos após meio-dia.
A Folha enviou perguntas à Presidência da República sobre a rotina de mandatário, mas não houve resposta.
A consulta às atividades de Bolsonaro é prejudicada pelo fato de não haver uma divulgação detalhada de suas atividades. É comum suas redes sociais mostrarem compromissos que não estão na agenda pública.
A necessidade de o presidente divulgar os compromissos oficiais está na Lei de Conflito de Interesses, que entrou em vigor em 2003.
Bolsonaro participa de motociatas e outros eventos públicos, mas não os divulga na sua agenda alegando que está indo como pessoa física.
“Essa classificação que está sendo feita, do que é público ou privado é equivocada. Estamos falando [caráter privado] de reunião familiar, jantar, batizado de um neto. Parece haver uma confusão do que é um ato público e um ato privado”, disse o consultor sênior da Transparência Internacional (Brasil), Michael Mohallem.
O professor Gregory Michener, da FGV, faz uma comparação com o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, frequentemente emulado por Bolsonaro. “O Trump não divulgava muito bem as agendas deles. É uma norma internacional que se deve divulgar esse tipo de informação”, disse.
Já o professor de Ciência Política na UnB Frederico Bertholini afirma que, em sua visão, presidentes da República estão trabalhando o tempo todo porque são figuras de representação política.
“Quando o Bolsonaro está andando de jet ski, a última coisa que ele está fazendo é tirando folga. Ele está ocupando espaço público, sinalizando para o eleitor dele, que é o que ele faz o tempo todo”, disse.
Para Bertholini, o presidente não pode ser comparado ao CEO de uma empresa. “Como se fosse alguém que tem que ter uma rotina de trabalho, uma agenda lotada de compromissos estritamente associados à função de gerenciar, governar. Presidente da República não é isso, é figura política.”
Ele compara com Lula, que em alguns fins de semana fazia churrasco e jogava futebol na Granja do Torto, uma das residencias oficiais da Presidência. “É óbvio que o Lula se divertia jogando bola e comendo churrasco, mas também era uma sinalização política.”
Ranier Bragon, Lucas Marchesini e Matheus Teixeira / Folha de São Paulo